sábado, 13 de fevereiro de 2010

"Na manhã do 1º de novembro a cidade estremeceu, abalada profundamente, e começou a desabar. Eram nove horas, dia de Todos-os-Santos. Nas suas casas ardiam as velas dos oratórios, e as igrejas regurgitavam povo a ouvir missas. Toda a gente, numa onda, correu às praias; mas, rolando em massas, estancou perante a onda que vinha do rio, galgando a inundar as ruas, invadindo as casas. Por sobre este encontro ruidoso, uma nuvem de pó que toldava os ares e escurecia o sol, pairava, formada já pelos detritos das construções e das mobílias, que o abalo interno da terra vasculhava, e os desabamentos enviavam, em estilhas, para o ar.

A onda do povo aflito, retrocedendo, a fugir do mar, tropeçava nas ruínas; e as quedas, e a metralha dos muros que tombavam, abriam na floresta viva, aditada pelo vento da desgraça, clareiras de morte, montões de cadáveres e poças de sangue, dos membros decepados, com manchas brancas de cérebros derramados contra as esquinas. E as casas erguiam-se com as paredes desabadas, os tetos abertos sobre os esqueletos dos tabiques, mostrando a nu todos os interiores funestos, neste dia em que, para muitos, Deus julgara e condenara Lisboa, como outrora fizera com Sodoma.

Por isso rouco trovão dos desabamentos se ouvia cortado pelos ais dos moribundos, e pelos gritos dos homens e das mulheres, abraçados às cruzes, aos santos, às relíquias, soluçando ladainhas, ungindo moribundos, parando esgazeados a cada novo abalo da terra que não cessava de tremer, arrastando-se pelo chão, de joelhos, com as mãos postas, a face em lágrimas, a clamar: Misericórdia! Misericórdia!

Casas, palácios, conventos, mosteiros, hospitais, igrejas, campanários, teatros, fortalezas, pórticos, tudo, tudo caía. 'Se visses somente o palácio real, diz uma testemunha, que singular espetáculo meu irmão!' Os varões de ferro, retorcidos como vimes, as cantarias estaladas como vidros. A onda do rio sorvia num momento o cais do Terreiro do Paço, com os barcos atracados coalhados de gente. Dos andares altos precipitavam-se sobre as lajes das ruas. O medo crescia, vinha loucura: viam-se mortos arrastados pelos vivos, viam-se mutilados coxeando, gente correndo desgrenhada, seminua, homens e mulheres, velhos e crianças, dilacerados, sangrentos, arrastando uma perna fraturada, esvaindo-se em sangue por algum membro decepado. Gritos, choros, clamores, imprecações, ais, preces, um burburinho de vozes desvairadas acompanhava os gemidos comprimidos dos soterrados nos escombros.

No turbilhão das ruas, havia quedas e mortes, abraços e agonias. A mesma loucura dos homens era o desvairamento dos brutos: os machos, desbocados, arrastavam os cavaleiros e as caleças, precipitando-se nos despenhadeiros da cidade montuosa; e a massa de gente viva, moribunda e morta, de envolta com os entulhos, rolavam nas ruas ladeadas pelos esqueletos das casas dando uma imagem desolada do que seria o caos. Quando a terra se subvertia, quando o mar vinha subindo, a afogar a terra, quando no ar faiscavam as línguas flamíferas rutilantes, que lembrança poderia haver das invenções humanas?

Abraçados, confundidos, na comunidade do pranto, fidalgas e freiras, meretrizes e mães, mendigos e senhores, vilões e cavalheiros, abraçavam-se na comunidade da fome, do frio, da nudez, do terror. De rastros a cidade inteira, sacudida pelo abalo formidável, reunia toda a sua eloqüência numa palavra única - Misericórdia! Misericórdia!

Mas vinha o clarão das chamas com a sua luz sinistra; vinha a labareda fustigar com lume a pobre gente seminua, tiritando sob o açoite de um nordeste frígido. Gelava-se a ardia-se a um tempo; sufocava-se em fumo e pó. E as labaredas cresciam, e o incêndio lavrava, e aos gritos desvairados dos infelizes juntava-se o crepitar das madeiras, o estalar das cantarias, a cascalha dos espelhos, dos cristais e dos charões, que o fogo devorava. A densa nuvem de pó que escurecia tudo, iluminava-se com os clarões vermelhos que rebentavam por toda a parte, porque Lisboa inteira derrocada era um braseiro. As línguas orgulhosas das chamas subiam emproadas para o céu, juntando às preces lacrimosas de habitantes como um protesto satânico dos elementos.

Outros protestos, mais positivos e igualmente horríveis, atroavam agora os ares: os escravos vingavam-se da sua escravidão, os mendigos da sua pobreza, os maus da sua maldade. O assassinato, o estupro, o roubo, como numa terra posta ao saque, rolavam de envolta com as ruínas e o fogo; e por entre os destroços ainda apagados viam-se os perfis negros dos escravos, rindo infernalmente, com os olhos injetados, os dentes brancos, a atirar tições ardentes para cima das ruínas, aumentando o incêndio, aclamando a chama vingadora... Misericórdia! Misericórdia!

Calcula-se terem morrido neste dia, em Lisboa, de 10 a 15 mil pessoas. Dessa hecatombe nasceu o poder do marquês do Pombal... O terramoto fez-se pois homem, e encarnou em Pombal, seu filho."


Oliveira Martins sobre o Dia de Todos os Santos de 1755, feriado religioso mais importante de Portugal à época, dia do maior terremoto da história portuguesa.

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