quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Nota de uma manhã de quinta feira em fins de agosto

Quando acordei por volta das 10 da manhã, com os gritos e palavrões dos moleques que corriam alucinados atrás da pelota de couro surrado, ele já chorava. Entre os palavrões berrados com a plena convicção de quem nada sabe, Mateus também gritava por algo que sua mãe agoniada tentava descobrir, ora uma com os cabelos entre as mãos. ora outra cantando canções infantis com o filho no colo. Em alguns momentos o pranto do rebento recém-chegado cessava, para em pouco retumbar novamente.
Aos poucos esvaíam os gritos daqueles pivetes que chutavam bola de pé descalço no asfalto preto, finando o futebol assim que o sol apareceu no meio do céu entre a densa camada de poluição. A agonia de Mateus continuava, agora dividia espaço com o ronco das peruas escolares lotadas de outras crianças que esperneavam neuroticamente entre elas e os 'tios' condutores e com o cheiro do almoço requentado com bife acebolado que subia entre as paredes das 4 casas da Rua Reta.
Eu não tenho filhos, quando escuto o choro descontrolado de uma criança por mais de 5 minutos os nervos afloram. Aquela mulher já aguentava por mais de 2 horas uma linha intermitente de gritos estridentes e respiros ofegantes de um pulmão pequeno, potente e irritante. Quando tirei a última batata da fritura, os gritos eram tão fortes que Mateus parecia estar do meu lado, sendo este o momento do ápice onde a mãe, num repente desespero, ligou o rádio num volume considerável e começou a cantar bem mais alto que os gritos do aflito menino. "The Last Time I Saw Richard - Joni Mitchell" estava tocando na hora do almoço. A ausência de manifestações infantis durou os 5 minutos da música e mais uns 5 depois. Eu não me incomodei com os gritos de Mateus, já tinha ficado puto o suficiente com os jovens boleiros me tirando do sono ao som dos clamores por justiça ao juíz "filho da puta foi falta nessa porra do caraio", o que me prendia era o comportamento da mãe, mulher discretíssima, naquele estado de nervos, santo desespero, sabe se lá o que passa na cabeça duma pessoa exposta a uma situação de extrema irritabilidade, diante a incapacidade de solucionar um problema severo. Imagino uma comparação daqueles berros com uma dor de dente latejante, sendo o analgésico dela o estéreo sintonizado na Alpha. Pior que aspirina, cabe dizer, durou nada pois o pranto logo recomeçou.
Da janela onde eu tragava após o almoço vi a mãe que andava de lado para outro pela cozinha falando ao telefone, que logo desligou, e tateando sobre os móveis antes de bater a porta e tentar abrir o portão. Suas mãos tremiam tanto que deixou a chave cair por 3 vezes antes de sair transtornada pela rua, descalça, como os moleques que corriam atrás da pelota antes do meio do dia. Estaria ela, mulher da igreja e prendada, abandonando o filho no ápice da agonia?
Não.
Estava vindo e tocando a campainha da minha casa. Ela estava suada, descabelada, com os lábios secos e falava baixo. "Eu preciso fazer um chá pra acalmar meu filho, minha camomila acabou, você não tem um pouco aí pra me emprestar?". Naquele momento pensei em quanto ela estava sofrendo à toa, poderia ter economizado 2 horas de desespero vindo aqui antes, mas o que ela disse depois foi o que mais surpreendeu. "Você não tem um cigarro daqueles para eu fumar? Daquele com cheiro forte que você fuma na janela de noite?". Foi só aí que os olhos dela perderam por pouco o foco no desespero. Claro que sim, é um prazer ver um careta andando por aqui. E entrou pelo portão com um punhado de erva na mão. Quando comecei a lavar a louça já não ouvia mais grito, nem choro, nem música nenhuma, nada além de grilos cricrilando ruidou até os trovões que antecederam a chuva na Rua Reta. Dormiu Mateus, futuro cantor de ópera. Se a mãe voltar, futuro cantor de reggae.