Dona Maria encerra a escadaria dissimétrica e dispõe sacolas pláticas à mesa, engole água gelada pelo filtro de barro enquanto uma gota rebelde escorre pelo queixo e rega os seios da mãe de 4 filhos, brota um sorriso negro. Ajeita maças entre bananas, guarda na geladeira ovos e mortadela, espaço curto no meio de latas de cerveja, arruma tudo antes do descanso no sofá, só falta a prestação do fim do mês e o sentador pago à suadeira será, definitivamente, dela. No açougue ouviu os relatos da noite anterior, acertos e desacertos, polícia, usuário e traficante, a santíssima trindade da favela e a lei do fiou, morreu. Sempre morrem os usuários que não pagam nas mãos dos traficantes que morrem quando não acertam com a polícia. E ela, Dona Maria, não usa, trafica, ainda menos policía. Deus do céu, o sinal dos tempos. Ergue a cabeça pela janela e estende-se a favela por tudo que ela olha. A televisão funciona, quanta tragédia. O Haiti, coitados. Negros em favela que morrem de fome se não roubarem, mas lá, no Haiti, não há o que roubar, é tudo uma grande favela e nossos ‘piriquitos’ protegem com a própria vida os bairros ricos (será que tem mais de um?) de toda a extensão pobre. É como aqui, polícia protege quem tem de quem não tem, questão de classe. A velha sentada sente saudade do abraço negro do filho que foi pra longe ganhar a vida, negro sem emprego fica sem sossego porque sente fome, a negra outrora deslumbrante jurava torpor a filho polícia, traficante, usuário. Cada um alheio em seu canto. O negro e seu canto. A mulher branca de sobrenome complicado diz que lá na América Central as crianças são órfãs e o povo precisa de ajuda, Dona Maria olha pela janela e suspira um, Coitados. Desgraça lá, fatalidade aqui. No morro grande e belo que despencou foi tragédia ambiental, a fúria da natureza, como lá no Haiti. No morro grande e feio que despencou a culpa foi do pobre, quem mandou construir lá? Mas isso é passado. Agora o mundo vê com Dona Maria que a tragédia no Haiti começou. Lá as pessoas estão morrendo, fome às crianças negras. Ao negro, raiz da liberdade.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
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Um comentário:
Ouvindo "Sorriso Negro", Jorge Portela, Adilson Barbado e Jair Carvalho pela voz de Thobias da Vai-Vai.
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